sábado, 3 de novembro de 2012

Esplendor na Relva - Texto da folha de sala


Esplendor na Relva vai à poesia de Wordsworth buscar o seu título e, no que diz respeito ao desenvolvimento das personagens, o seu tema. O poema surge em dois momentos muito específicos do filme, sendo que, da primeira vez, o seu significado chega mesmo a ser motivo de debate: Deanie, a protagonista feminina, fala dos ideais de juventude, e acredita que os versos We will grieve not, rather find/Strength in what remains behind traduzem a chave para a postura a adoptar à medida que eles se vão perdendo com o passar dos anos. Com efeito, o filme nunca chega a citar os versos que surgem imediatamente a seguir na Ode to Intimations of Immortality (In the primal sympathy/ Which having been must ever be;/ In the soothing thoughts that spring/ Out of human suffering;/ In the faith that looks through death,/ In years that bring the philosophic mind), de onde são retirados aqueles que ouvimos, primeiro na aula e, depois, no carro, mas não será difícil descobrir ecos destas palavras no desenrolar dos acontecimentos ao longo da história, particularmente na parte final do filme, no momento do reencontro entre Deanie e Bud. Este reencontro, que faz com que as personagens constatem o abismo que as separa, agora, do momento em que estiveram apaixonados e com promessas de felicidade, bem como a completa impossibilidade de resgatarem essa época das suas vidas, de a ela regressarem (Though nothing can bring back the hour/ Of splendour in the grass, of glory in the flower), surge, segundo o próprio Kazan, como "a aceitação das consequências do desastre". Mas que desastre, afinal? O da subjugação dos valores da sociedade às leis de que depende o sucesso dos negócios que a regem, subjugação que gera um colapso desses valores e, derradeiramente, a "destruição das partes mais ternas e humanas" de cada um de nós. Deanie e Bud vêem o futuro da sua relação, assim, inteiramente condicionado por razões económicas e morais: enquanto as circunstâncias económicas em que a história se passa (e que, no caso do pai de Bud, são a matriz do seu comportamento relativamente ao filho) ameaçam lançar Bud para longe da personagem de Natalie Wood, a moralidade através da qual a mãe de Deanie enquadra as relações amorosas, e que espelha a mentalidade da época em que os acontecimentos se desenrolam (fim dos anos 20, início dos anos 30), faz com que a filha não se consiga entregar a Bud como deseja, a relação dos dois sucumbindo, no final, aos conflitos gerados por estes dois eixos segundo os quais a história é delineada, e os dois tornam-se protagonistas de uma tragédia despoletada, em última análise, por questões que lhes são exteriores.
Estes elementos são introduzidos logo no momento em que Deanie e Bud se encontram no carro junto à cascata, funcionando esta cena inicial, relativamente a todo o filme, como funciona a frase com que Tolstoi começa o seu Ana Karenina ("Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes são-no à sua maneira") ou aquela que abre Orgulho e Preconceito, de Jane Auten ("It is a truth universally acknowledged, that a single man in possession of a good fortune must be in want of a wife") - tal como estes autores, Kazan consegue estabelecer, logo nos primeiros instantes do filme, o tema (a repressão sexual e o seu poder anulador) e as principais questões com que a história e as personagens irão lidar (o conflito entre o desejo de Bud e de Deanie de concretizarem a sua relação no plano físico e as restrições impostas pela moralidade da época); além disso, é apresentado o elemento da cascata, fortemente associado ao desejo sexual e sua consumação, que será um motivo visual com bastante relevo durante o resto do filme.
Tendo tudo isto em conta, não nos surpreende o tom profundamente elegíaco em que surge mergulhado o filme, que desde logo trabalha o seu sentido de uma forma clara (mas não explícita) e misteriosa, pormenor que faz com que a vida o invada a cada momento: lembremo-nos do momento em que Deanie, recuperada da sua doença, volta a casa, e do seu primeiro pedido quando aí chega; ou do encontro final dela com Bud, em que o que é realmente importante fica por dizer, como na vida, a cena revelando-se interessante precisamente por isso. O instante em que Deanie entra em casa de Bud e se vê ante uma família que poderia ser a sua (uma cena de cuja angústia crescente, simultaneamente inexprimível e a custo reprimida por Deanie, somos no final aliviados por um travelling que a acompanha enquanto ela se afasta para sair de casa), ou o momento final, em que o poema volta a surgir, em off, como resposta à pergunta que a amiga de Deanie lhe coloca, são exemplo daquilo que, a meu ver, eterniza o filme para nós (em nós), a imagem de Deanie quando sai a correr da sala de aula depois de se debater para explicar o significado do poema - o plano em que a vemos atravessar o corredor vazio, de costas para nós, que fecha a cena com uma rima perfeita com o plano que a inicia, que enquadra o mesmo corredor, então cheio de estudantes - tendo-se tornado das recordações mais vívidas que guardo comigo, tão ou mais intensa do que aquelas que foram protagonizadas por mim mesmo: somos feitos de personagens, afinal. E, nas memórias que vamos acumulando, as histórias delas confundem-se com as nossas.
Rúben Gonçalves

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