segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Notas de Elia Kazan sobre Esplendor na Relva

Espreitamos o diário de Elia Kazan e descobrimos várias entradas sobre a produção de Esplendor na Relva, que iremos publicar durante estes próximos dias. Estas notas podem ser consultadas no livro Kazan on Directing.

2 de abril de 1958

Romeo in the Age of Business, Style: A Romantic Tragedy

Deanie is being prevented from giving herself to Bud ostensibly on moral grounds, but really because Mr. and Mrs. Loomis know that 'if you give it away then he won't but it'.
A poem in praise of young love. Take time (and make the script short enough) so that
it can be a poem, so you will have time and the room for poetry, the boy and the girl laughing, eating fruit, juice of peaches running down the faces. In the sunlight. Dramatize the young love so the audience feels and knows that this is the best time of their lives.
They are not aware! They're not aware! The're not aware of what's happening to them or the significance of what's happening to them. Also, Bill Inge holds all his characters at arm's length. They should not be directed subjectively. They are all observed as characters.

domingo, 28 de outubro de 2012

Sessão n.º 2
Ao encontro de... Esplendor na Relva (1961), de Elia Kazan

Cartaz de Marcelo Pereira
É a segunda sessão e desta vez vamos Ao encontro de... Esplendor na Relva, longa-metragem de Elia Kazan estreada em 1961 nos EUA. Quem tiver página de Facebook pode confirmar a sua ida a partir da ligação do evento. O convidado a falar nesta sessão ainda será revelado em breve.

The River, uma reflexão


I'm not crying because you are going. I'm crying because it is going. (...) This being together in the garden. All of us happy and you with us here. I didn't want it to change, but it's changed. I didn't want it to end, but it's gone. It was like something in a dream. Now you've made it real. I didn't want it to be real!

 À saída de dois filmes que vi recentemente, dei por mim a conversar com as pessoas com quem os partilhei sobre essa questão aparentemente tão difícil de resolver relacionada com a natureza do cinema, com as propriedades ou características que nos permitem reconhecer uma determinada obra como um objecto cinematográfico; confesso que de ambas as vezes saí insatisfeito com as intervenções que escutei, e eu próprio não fiquei convencido com as minhas respostas. Longe de querer aproveitar este espaço para dar voz às minhas convicções pessoais a respeito do assunto, penso que é este um bom ponto de partida - "o que é, afinal, o cinema?" - para a breve reflexão sobre o filme de Renoir que vimos esta sexta-feira passada, se tivermos em conta dois pontos: que essa é uma pergunta a que todos os realizadores se propõem responder sempre que concebem um filme, e que "The River" não existiria sem os décors naturais em que a acção se desenrola, condição que desde a sua génese foi encarada por Renoir como indiscutível para a sua concretização e pormenor que não nos parece supérfluo à luz do discurso do filme (sobre o qual discorreremos em seguida) e que nos leva a um dos aspectos mais marcantes aqui, isto é, a presença da paisagem (a presença da Índia) no filme.

 Os primeiros planos - as mãos femininas que desenham a giz, os pescadores em contenda com os remos nos barcos - e respectivo acompanhamento musical mergulham-nos desde logo, juntamente com a voz-off de Harriet (que assim se assume como um mecanismo que será recorrente no filme), nas tradições indianas em que a história encontra as suas raízes, e também nós não demoramos a sentir aquele enlevo descrito por Renoir a propósito do efeito que a sua estadia na Índia teve sobre ele, enlevo cuja verdadeira natureza ainda não discernimos mas que terá algo a ver com os tecidos das cortinas que trazem para dentro das casas uma luz que já não é a mesma que dá às conversas na rua o seu compasso característico, e que nos mostra, em todo o seu esplendor e vivacidade, as cores das fachadas das moradias, da relva e das árvores floridas; com as sombras que projectam essas árvores, segundo os caprichos da movimentação do sol, e também as pessoas cujas existências as reúnem em torno delas, quer seja em brincadeiras (Harriet e os irmãos no jardim, nos momentos iniciais do filme), em dissimuladas confissões de sentimentos no baloiço, ou a entregarem-se aos suaves prazeres de uma sesta vespertina - tal como Renoir, também nós sentimos esse encantamento pela Índia, também nós nos sentimos intrigados pela sua paisagem e pelas margens dos seus rios, junto das quais os anciãos aprendem a sabedoria desse país milenar, e que Harriet descreve, a dada altura, com as seguintes palavras: "Queria escrever cada vez mais. Sempre sobre o rio. Queria contar ao Cap. John como as pessoas dependem do rio espírita e fisicamente. O povo do rio e o povo da aldeia. Como os trabalhadores da juta se refrescam no rio após um duro dia de trabalho e os homens lavam as suas roupas. Sobre os velhos que se aquecem ao sol. Sobre as crianças que nadam e chapinham na água. Sobre os outros que vagueiam e meditam..."

 Ora, tal como Bénard da Costa, ao referir-se à árvore (a "Árvore do Povo", a que se dirigem as mulheres para pedir a bênção de um filho), a lembrou como sinal do permanente e do efémero, lançando luz sobre a justaposição dessas duas realidades, há em "The River" um tratamento da paisagem que, além de conferir ao filme um tom fortemente pictorial (Renoir cresceu, afinal, entre a pintura), sobrepõe precisamente os acontecimentos humanos, com as suas tragédias mais ou menos significativas, e a placitude da natureza: o momento mais ilustrativo disto mesmo sendo a cena do funeral de Bogey, em que, no mesmo plano, nos é dada a ver a procissão atrás do caixão e os animais que, lá ao fundo, se alimentam das ervas. A relação que o filme estabelece com a natureza assenta, pois, nas ideias de ciclo e circularidade: ao ciclo da vida (com especial ênfase no que respeita aos momentos do nascimento e da morte) preside a circularidade segundo a qual tudo o que nasce do rio a ele regressa - é o rio, que conta todas as histórias, de onde todas elas partem e onde virão invariavelmente desembocar, que faz chegar Cap. John às vidas de Harriet, Valerie e Melanie, no barco a vapor: o barco a vapor trá-lo, no início, e levá-lo-á para longe, no final do filme; Bogey, o irmão de Harriet, que surge desde os primeiros minutos associado aos animais, morre devido à mordidela de uma cobra - e, no momento do seu funeral, a cerimónia coexiste com o gado que pasta nos prados, uma ideia que Bresson revisitaria no final do seu "Au Hasard Balthazar" ao deixar o seu protagonista, depois de uma vida sujeita às vontades dos humanos, aos seus maus cuidados e negligências, morrer entre os animais, depois de ser baleado.

 Com efeito, a circularidade é um factor a considerar na tensão entre realidade e sonho que o filme trabalha no seu âmago, e relaciona-se, mais uma vez, com os dois grandes acontecimentos do filme: a paixão que as três raparigas desenvolvem pelo Capitão John e a morte de Bogey. Podemos dizer, ao atentar nas primeiras cenas do filme, que Harriet e as amigas levam as suas existências numa espécie de idade da inocência, cuja tranquiliadade a chegada de Cap. John vem perturbar, ao introduzir a realidade do amor no mundo fantasiado de Harriet, a morte de Bogey funcionando, depois, como a derradeira sobreposição da realidade ao sonho - interrompendo-o literalmente, se tivermos em conta como a descoberta da morte de Bogey se dá: vemos, a começar por Harriet, no jardim, uma sequência em que os elementos da família fazem a sesta nas diversas divisões da casa, excepto Bogey, que vai brincar com o amigo Kanu para a Árvore do Povo, junto da qual avistara uma cobra; voltamos a Harriet, que, ao despertar, dá pela ausência de Bogey e o vai encontrar, já morto, junto à árvore, havendo neste deste despertar um valor simbólico tal que não seria deslocado dizermos que é este o momento em que a trajectória pessoal de Harriet ao longo da história a conduz finalmente ao alcance da maturidade. Antes de falarmos do crescimento, do alcançar da maturidade, questões muito centrais no filme, convém contudo atentar num outro elemento que testemunha a importância da materialidade da paisagem em "The River": o muro. O muro, que separa a casa de Harriet da casa do vizinho Mr. John, relaciona-se com a tensão entre realidade e sonho uma vez que Renoir decide colocar as suas protagonistas atrás dele em dois momentos-chave, que decorrem além-muro - a chegada de Cap. John e a procissão fúnebre da morte de Bogey, respectivamente -, estabelecendo-o, assim, como uma barreira física entre o mundo familiar - o mundo do sonho, enfim, associado a Nan ("the bridge to life"), aos serões passados na companhia da música e às brincadeiras no jardim - e o mundo real, associado ao Cap. John e à morte de Bogey, havendo no pormenor de elas assistirem a estes dois momentos resguardadas pelo muro a manifestação da dimensão circular da construção narrativa do filme ("clay goes back to clay", diz-nos Harriet sobre Kali e os rituais de celebração dessa deusa da criação e da destruição que inspirou aos indianos a crença de que uma coisa não pode ter lugar sem a outra) mas, também, a sugestão do ciclo destinado a repetir-se que é, no fundo, a existência de cada um de nós: o rio traz Cap. John até elas, e é ao rio que Harriet regressa no esforço vão de reencontrar Bogey depois da sua morte, com a sensação de que tanta coisa ficou por lhe contar; mesmo a narrativa que Harriet relata a propósito da cerimónia tradicional do casamento indiano arranca de Valerie a observação de que aquilo não tem fim, estando tudo fadado a repetir-se com o nascimento da rapariga, momento de suspensão da intriga do filme propriamente dita que, contudo, prenuncia o seu final, com o nascimento da irmã de Harriet.

 Assim sendo, há em "The River" a noção de que o crescimento de Harriet e das amigas se dá através do contacto com as realidades do amor e da morte, e de que o nascimento está sempre intimamente relacionado com a morte (não havendo propriamente uma relação causal entre os dois eventos, o facto é que à morte de Bogey sucede o nascimento da irmã). Dissemos antes que o tema do crescimento é algo de extrema relevância na compreensão do filme, e bastaria evocarmos as palavras que, em off, surgem no seu início para dissiparmos quaisquer dúvidas: "it is the story of my first love, and about growing up in the banks of the river". Desde aqui que o filme faz coincidir o crescimento das suas protagonistas com a descoberta do amor, ideia muito Jane Austeniana que ganha força nas palavras da mãe de Harriet no momento em que ela discorre sobre a experiência da maternidade, inserindo-a nesse ciclo interminável de começos e fins ao dizer à filha que ter filhos do homem que se ama "it's a precious, sanctified work", sendo o acontecimento que confere sentido à vida de uma mulher - o acto de amor figurando-se como sagrado, para ela, porque indissociável do acto de criação, de nascimento, de vida que se inicia. Tal como o amor, diz-lhe ela, esta é uma experiência que é dolorosa precisamente porque é suposto fazer pensar e sentir aquelas que a protagonizam. São, no fundo, as growing pains de Harriet, e há diversos momentos do filme que testemunham esse crescimento que está ainda em vias de se dar, momentos de uma tremenda manifestação da humanidade da personagem e que a separam de Valerie e de Cap. John, que muitas vezes a encaram com alguma condescendência: lembremo-nos, por exemplo, da cena em que Harriet anuncia saber tudo sobre Krishna, na tentativa de impressionar Cap. John, mas vendo-se forçada a perguntar-lhe, e a Valerie, como se soletra o nome desse deus; ou a cena em que Harriet se propõe a mostrar a Cap. John o seu livro de poesia - a poesia, que surge enquanto sinal da maturidade de Harriet e meio através do qual ela busca captar a atenção e interesse do Cap. John - explicando-lhe que "é um segredo" do qual estão a par, contudo, Nan, a mãe e outros elementos da família, como ela logo lhe revela.

 Há, porém, uma cena do filme que materializa quase literalmente, através do staging da acção, estas ideias que relacionam o crescimento das protagonistas com o amor, o mundo de casa de Harriet, o jardim em que se trocam todas as confidências, e a realidade lá fora - temos em mente a cena em que Cap. John segue Melanie até à floresta, sendo ele seguido, por sua vez, por Harriet e Valerie, que correm atrás dele com flores nas mãos para lhe oferecer. Ora, para irem atrás dele, quer Harriet, quer Valerie têm ultrapassar o muro da casa (e isto é deixado bem claro pelo plano que nos mostra Valerie saltando-o e correndo, atrás de Harriet, em direcção à floresta), e a voz off de Harriet surge nesse momento para nos dizer que "suddenly we were running away from childhood, rushing toward love", sublinhando o carácter simbólico não só desse gesto particular mas de que se revelará carregada a própria cena, tal como as da chegada de Cap. John e do funeral de Bogey, que referimos anteriormente. O modo como a cena progride não é difícil de resumir: as quatro personagens chegam à floresta e acabam por dispersar-se entre as árvores; Valerie surge junto ao Cap. John e interpela-o, os dois acabando por se beijar sob o olhar de Melanie e Harriet. A esse beijo segue-se o monólogo de Valerie que serviu como introdução a este texto, havendo no travelling que encerra a cena e que nos afasta de Valerie e de Cap. John a sensação, que parte do interior das personagens e que nos vem envolver, de que algo se perdeu irrevogavelmente nesse momento. Poderíamos ousar mesmo dizer que o staging da acção nesta cena ilustra o fascínio de Renoir pela Índia (um ano lá tornara-o diferente, como o próprio confessou: "A Índia deu-me uma certa compreensão da vida, (...) ensinou-me talvez a ser um pouco mais paciente na vida, a compreender talvez que cada um tem as suas razões"), ao termos Cap. John, o forasteiro, a lançar a cena ao ir atrás de Melanie, a bela indiana, cativado pelo seu mistério e pela ambiguidade que caracterizara o momento anterior entre eles, dentro da casa. E este fascínio pela Índia vivido por Renoir, esta ânsia de a revelar um pouco aos que nunca a visitaram (não obstante ele ter admitido que para um francês a Índia é um lugar muito fácil de compreender), justifica talvez a natureza fortemente documental do filme - que se manifesta sobretudo nos momentos dedicados a elucidar-nos sobre a natureza da cerimónia de Diwali, a vida dos pescadores, o modus operandi dos trabalhadores da fábrica de juta que o pai de Harriet possui, as celebrações a propósito de Kali, ou a sequência em que nos é dado a ver uma série de escadarias que vão dar directamente ao rio - e com a qual a voz-off (presente desde os momentos iniciais, e sem a qual o filme nos parece inconcebível) se relaciona intimamente, pormenor que a resgata da mera função de comentário ou de exteriorização dos sentimentos e pensamentos de Harriet, que a poderia tornar irrelevante ou, pelo menos, redundante (algo que, felizmente, nunca acontece), voz-off essa cuja presença se torna ainda mais significativa se tivermos em conta que se tratou de uma decisão de montagem.

O rio, a árvore, o muro. O ciclo, a circularidade - o consentimento: é essa a postura a que o filme no final aspira a fazer o encómio, atitude que surge enraizada nas tradições indianas em que a história vem imbuída e que, também ela presente em Ozu, por exemplo, parece conter a chave para a continuidade desse ciclo que, no filme, reúne a aceitação da morte de Bogey, o ferimento que para sempre isolou Cap. John das pessoas com quem se relaciona, o amor que ele nunca dedicará a Harriet, e Melanie e o mistério das suas origens: a maturidade surge assim, para eles, não como uma ultrapassagem desses conflitos interiores, mas como a aceitação desses dilemas e paradoxos com os quais as vicissitudes das nossas existências nos fazem conviver.

Rúben Gonçalves

Prof. João Maria Mendes sobre O Rio Sagrado

Publicamos hoje a apresentação filmada do Prof. João Maria Mendes do filme O Rio Sagrado (1951), de Jean Renoir, exibido na passada sexta-feira (dia 26 de outubro). Devido a problemas de ordem maior não pudemos proceder à discussão do filme que daria seguimento ao visionamento. Aproveitamos ainda para divulgar, com este vídeo, o nosso canal de Youtube (que convidamos a todos a subscrever). Muito obrigado àqueles que estiveram presentes e, muito em especial, ao Prof. João Maria Mendes. Para a semana há mais.

sábado, 27 de outubro de 2012

O Rio Sagrado – texto da folha de sala



Descobri O Rio Sagrado numa aula de Teoria da Montagem – descobria então aquele que é um milagre de filme; “milagre” no princípio, que nos dá as boas-vindas a um território (a Índia) onde me parece que a vida é celebrada como uma passagem para outro início (outra Índia); “milagre” no fim, que reforça a ideia de eterno retorno com um nascimento. Lembro-me (porque escrevi no caderno de notas) que tive medo de intervir na aula, sob a pena de destruir algo, potencialmente bigger than life, que estava diante de mim. No momento em que escrevo estas palavras continuo com esse medo e, também, ainda assombrado.

João Bénard da Costa, no seu texto sobre O Rio Sagrado, redisse que era “o mais belo filme do mundo” – convicção que acompanhou com um ligeiro espanto: se é o mais belo por que razão não o vemos citado como um dos mais importantes Renoirs? Se não fôssemos descrentes na arbitrariedade da enciclopédia 1001 Filmes para ver antes de Morrer morreríamos descansados por não termos visto O Rio Sagrado (que não consta na lista). Um filme que, afinal, não teme a morte – e é obrigatório, dizemos nós, para se ver vivo!

Quando, em 2012, (re)vemos este filme as suas imagens parecem-nos levar a um referente desconhecido, como se a memória recordasse bem as personagens e o discurso patentes no filme do Renoir. Por fim descobrimos o raccord: afinal foi Terrence Malick quem, no ano passado, nos fez descobrir um novo mundo chamado A Árvore da Vida. Lá encontrámos a figura da mãe, omnipresente, as dores do crescimento, essenciais em ambos os filmes, a angústia sobre o mistério da morte, também ela central, e o modo de conduzir a nossa espiritualidade. As fundações dos grandes temas que Malick trata na sua destemida odisseia tinham já sido tocadas havia então 60 anos.

O Rio Sagrado, que nos sugere também a imagem de uma grande árvore (“a árvore da vida” que, quando surge de vez a vez, domina a força de todo o enquadramento e nos obriga a pensar na questão da fusão de tempos – passado, presente e futuro), segue estas questões com agilidade (e notável serenidade).

Renoir concentra, contudo, a voz interior do filme numa – na protagonista, a Harriet do futuro, que conduz, sempre em off e até ao fim, o fio da narrativa num discurso que percorre, primeiro, um lado eminentemente realista e documental – ligados aos rituais religiosos e ao quotidiano da Índia, ignorando os estereótipos dos “elefantes, lanceiros e tigres”, como o próprio Renoir refere na sua apresentação do filme, e filmando (através da bela fotografia do sobrinho do cineasta) a vida que há no Oriente e que é percepcionada pelos olhos de um “viajante” do Ocidente. Depois, a voz de Harriet toca também a poesia (os versos simples que tão sincera e ingenuamente dedica ao Capitão John por quem está apaixonada) e, também, a fábula (a história dentro da história que nos faz aceder à cerimónia nupcial: mágica e primitiva, já que nos leva à origem da tradição).

O rio tem uma poderosa força simbólica (Bénard da Costa referia a sua feminilidade para descobrir como este era porventura o filme mais “feminino” de Renoir) mas parece-nos que é de igual modo uma imagem altamente sugestiva pelo seu lado unificador. Como a vida, o rio também existe através das suas atribulações ou, dito de outra forma, através das suas ondas – o equilíbrio daquela família inglesa faz-se não pela total estabilidade mas pelo crescimento, necessariamente agitado, de cada personagem. É certo que Renoir se foca no desenvolvimento de Harriet que, ao procurar dar sentido à crescente desordem do seu universo, se depara com a realidade dos acontecimentos (será que em 2012 alguém, com a informação instantânea da Internet, sente a violência destas descobertas?).

Ao mesmo tempo, parece-nos que todas as personagens deste filme vivem constantemente um dilema entre viver num ideal da felicidade e uma realidade incerta que é, porventura, dolorosa – Valerie, a dado momento, desabafa: “it was like something in a dream. Now you've made it real. I didn't want to be real”. Do mesmo modo, numa das cenas mais fascinantes do filme, Harriet confronta-se inevitavelmente com absurdo da realidade logo após a morte do irmão: afinal, o Bogey morreu e estou diante de um prato de comida? Ao mesmo tempo e contrariamente, Mr. John faz uma confissão radical mas absolutamente consciente: “we should celebrate that a child died a child. That one escaped. We lock them in our schools, we teach them our stupid taboos, we catch them in our wars, we massacre the innocents. The world is for children. The real world.”

Assim o rio continua – como a vida. Num círculo sem “end”, mas “endless”. Depois da morte, um nascimento; depois de uma desilusão, as cartas que são esquecidas nas escadas... E tudo isto convive simultaneamente, isto é, em fusão. Foi, talvez, a lição mais preciosa que tirei da aula em que vi pela primeira vez O Rio: o filme, que integra (e não separa) corpo e espírito, Ocidente e Oriente, vida e morte, prova-nos que o cinema, tal como a nossa existência, pode ser, ao mesmo tempo, claro e indeciso. Obscuro e luminoso.

Flávio Gonçalves

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

João Bénard da Costa sobre O Rio Sagrado (1951)


De The River se tem dito e redito que é o mais belo filme do mundo. Ninguém, que não seja cego, recusará essa alucinante beleza. E, no entanto os mais fervorosos renoirianos raramente o citam entre os seus preferidos. Lembramos Renoir e vem à memória La Règle du Jeu, La Carrozza d'Oro, La Nuit du Carrefour, Le Crime de Monsieur Lange, Diary of a Chambermaid, Eléna et les Hommes, Le Testament du Dr. Cordelier. Depois diz-se e é verdade, The River. The River está assim para a obra de Renoir um pouco como as Afinidades Electivas para a de Goethe, a Mensagem para a de Pessoa, a Vénus (de Dresde) para a de Giorgine, A Clemência de Tito para a de Mozart. São coisas muito grandes, muito belas, mas que parecem pouco características, onde só com alguma dificuldade encontramos o que mais nos fascina nesses autores. Ninguém diz que e secundário, mas fica como um parêntesis.

Dar a palavra a Renoir talvez seja a melhor maneira de explicar o mistério do Rio.

Renoir associou sempre este filme à Idade Média: 
"O que me permitiu perceber um bocadinho o que pode ter sido a arte da Idade Média, foi a minha estadia na Índia, na altura do Rio. Na Índia, há ainda artes não difundidas, que são arte da maior, juro-lhes. Há ainda na Índia cantores e bailarinos que correspondem ao que devem ter sido os trovadores e os baladeiros na Idade Média. Um trovador não difundia nada. Espalhava-se a si próprio. Ia até às quintas, aos castelos, às praças públicas. Como não havia difusão, não havia especialização (...). Hoje vivemos numa época em que a arte se tornou puramente subjectiva, perdeu o sentido do concreto, refugiou-se no espiritual inacessível e gelado. Tive uma conversa a propósito disto com Dali que me disse uma coisa inteligentíssima. Disse-me: 'No princípio, os artistas olhavam o mundo de muito longe. Representavam grandes batalhas, três mil cavalos, árvores pequenas, céus infinitos, cidades, fortificações. No Renascimento, aproximaram-se ainda mais. Agora, já estamos do outro lado do olhar. Os temas não estão diante dos olhos, mas atrás deles'".
É extremamente curioso que Renoir aproxime esta conversa com Dali de The River. E é-o, porque a obra imediatamente anterior - esse fabuloso e misterioso The Woman on the Beach, - já reflecte essa visão, esse "outro lado do olhar". Quem tiver visto esse filme, lembrará que nunca vemos nele os quadros por Charles Bickford, o marido cego de Joan Bennett, nem sequer o retrato dela. Literalmente, nessa obra os temas não estão diante dos olhos (ocultados sempre à nossa visão e à visão do cego) mas por detrás deles.


Mas se The Woman on the Beach é um filme "inacessível e gelado", The River não o é. Atenuou-se o pessimismo do autor, tão sublinhado nos seus desesperados filmes americanos? Renoir, numa entrevista, falou em duas vertentes da sua obra: a vertente pessimista e a vertente de compreensão. E disse: 
"O meu pessimismo provém do facto de sentir a amargura que pesa sobre a civilização que deu homens como Mozart ou como o meu pai, mas a minha compreensão ('bienveillance') provém de estar convencido que, apesar de tudo, os homens vão descobrir uma maneira. Uma nova tentativa de construcção da Torre de Babel (...). Dirigimo-nos a um mundo essencialmente instável, nós próprios somos instáveis. Evidentemente temos o direito de ser pessimistas, mas há momentos de grande confiança, por exemplo a confiança que tive quando filmei O Rio (...), a compreensão do que Melanie chama 'consentir' quando explica os seus problemas ao americano ferido e nervoso". 
The River é o filme desse consentimento que se pode ler também etimologicamente. É voltar a olhar para as coisas de muito longe, é o regresso ao que Renoir chama a visão medieval. E, embora nunca talvez obra sua tenha sido tão marcada pela pintura do pai, não há aí qualquer contradição. O consentimento consente tudo: a integração de Harriet, Valerie e do Capitão John no mundo de Melanie e dos seus deuses indianos, a integração da pintura de Renoir na arte ainda não especializada da civilização indiana, a integração dum progresso numa tradição. Donde a harmonização total, donde a beleza total, donde a paz total.

Saudados no início (actores e espectadores) pelo sinal com que são saudados os visitantes (na Índia), Renoir começa logo por nos recordar essa situação, dele e nossa. Não se pretende fazer passar por um autócne, por alguém que nuns meses tenha assimilado a visão indiana. É, como nós somos, um visitante. Ou seja, alguém que vem para ver. E para ouvir a história dum primeiro amor, igual a tantos outros, diferente de tantos outros. Pelo olhar de Renoir (um visitante de 56 anos) e pela voz duma adolescente (Harriet) estamos na Índia e no Rio. Os barcos, os templos, uma família de 5 pessoas, uma criada, amigos hindus. E uma árvore, essa portentosa árvore e que, do início ao fim, sem folhas e sem flores, ou coberta delas (nos fantásticos planos encarnados finais, pintados à mão por Jean Renoir e Claude Renoir) irá, como no rio, ser o centro da narrativa, o sinal do permanente e do efémero.


O rio como a árvore são grandes símbolos femininos e este é mais um filme feminino de Renoir. Há o pai, há o irmão mais novo, há o miúdo que depois genialmente introduzirá a morte nesta história, mas faltava o homem "ponte para a vida", aquele que transforma os sonhos em realidade e a realidade no sonho. E o homem chega, Mr. John, Captain John, personagem dividida, sinal de conflito, introdutor dos conflitos. Amado por Harriet, por Valerie, por Melanie, na difícil aprendizagem do consentimento. Com ele chega a festa mas a árvore também se torna (com ele) árvore do bem e do mal. Ao contrário do mito do Génesis (genial inversão de Renoir), o homem é quem permite o conhecimento dum e doutro, o fruto proibido.

Todo o universo é Deus, e desse universo faz também parte Kali, deusa da destruição (como a família aprenderá explicitamente com a morte do miúdo) mas que implicitamente surge associada a tudo o que divide as pessoas: os ciúmes, os segredos (o espantoso esconderijo de Harriet), o tempo sentido como perda e não como ganho. Não é por acaso que Kali é deitada ao rio na sequência do primeiro cigarro fumado por Valerie, sob o olhar ciumento da irmã e veladamente triste de Melanie.

Mas tudo faz parte do mesmo mundo identificado a Deus. Tal como não há pessoas feias (como a mãe explica a Harriet), tal como não há pessoas sem lugar (o capitão), tal como a noite se sucede ao dia, as estações umas às outras e um nascimento a uma morte (e quando nasce o bébé, caem as três cartas e tudo o mais deixa de ser importante). "Só peixes, só pássaros, só mulheres".


Não se acabava se se quisesse enumerar todas as coisas belíssimas deste filme. Mas não resisto, para além do muito já referido, a chamar a particular atenção para duas: as duas sequências do papagaio ("and he was closer to me", com o céu, árvores e a panorâmica pela arvore acima) e a sequência da cerimónia nupcial, que, de certo modo, concentra todo o filme, com a sequência paralela do enterro no rio.

O visitante Renoir olhou tudo em igual atenção e em igual beleza. Sabendo que "a meditação é um vasto mundo" e que ele próprio ("jamais contemplativo") só podia ir, através do olhar, ao fundo do mundo que via. O mundo humano onde tudo passa (os pequenos e grandes sofrimentos, as pequenas e grandes alegrias) e o mundo que rodeia os humanos e, para além deles continua, como o rio, onde jamais nos podemos banhar duas vezes nas mesmas águas.

Entre as sestas, os balouços, as fugas e os regressos, o "amor ocidental", associado à morte: "Captain John, I Love You".

Texto publicado em As Folhas da Cinemateca - Jean Renoir

Sessão n.º 1
Ao encontro de... O Rio Sagrado (1951), de Jean Renoir

Cartaz de Marcelo Pereira

A sessão número inaugural do ciclo de filmes Ao Encontro De... é já amanhã, dia 26 de outubro pelas 14h00, na Sala de Visionamento da Escola Superior de Teatro e Cinema. E é com enorme expectativa que começaremos este ciclo com O Rio Sagrado, realizado por Jean Renoir em 1951, apresentado pelo Professor João Maria Mendes.

O que é o ciclo Ao Encontro De...?

São sessões públicas e semanais de apresentação, visionamento e discussão de curtas e longas-metragens organizado pelos alunos de cinema do 3.º ano (2012-13) Flávio Gonçalves e Rúben Gonçalves, havendo uma alternância entre os filmes de origem portuguesa e estrangeiros. Há um especial cuidado na seleção dos filmes portugueses, privilegiando os filmes dos cineastas cujo percurso se relaciona, direta ou indiretamente, com a Escola Superior de Teatro e Cinema

As sessões, a ocorrerem a cada sexta-feira às 14h00, contarão, no caso dos filmes portugueses, com a presença daqueles que estiveram envolvidos no processo criativo do filme ou que, de alguma forma, nos podem elucidar sobre a sua importância (professores, realizadores, programadores e críticos). No caso dos filmes estrangeiros, os organizadores ou eventuais convidados (alunos, professores...), poderão apresentar o filme e lançar o debate a ocorrer após o visionamento. 

Neste debate, não é de excluir, por exemplo, o recurso a excertos fílmicos de obras que relacionem com a visionada. Na maioria das sessões haverá, antes da longa-metragem definida na lista, uma curta- metragem realizada e produzida na ESTC a antecedê-la.

De modo a promover e divulgar as sessões anunciar-se-ão os filmes programados a cada mês nesta página de Facebook e neste blogue. No caso deste espaço publicar-se-ão textos de reflexão escritos pelos organizadores e convidados que vão acompanhando as sessões e as questões suscitadas pelos filmes. No final, espera-se criar uma publicação conjunta em papel sobre esta iniciativa, que reúna todos os textos redigidos e informação respectiva às sessões, a ser disponibilizada, no final, na biblioteca da ESTC.

O nosso objetivo passa por divulgar e discutir uma cinematografia e um património relacionado com a ESTC que para muitos permanecem algo obscuros, revisitando alguns filmes que poderão ser representativos dessa escola e do cinema português na generalidade. No caso dos filmes estrangeiros o objetivo passa por promover o debate sobre obras que têm relevância, no entendimento dos organizadores, por questões estéticas (mise-en-scène, montagem, fotografia, som...) acompanhadas de uma reflexão sobre o contexto histórico-cultural em que foram concebidas e de que forma se relacionam com o presente.

Cada sessão, no momento da apresentação e discussão, será filmada, sendo que o registo audiovisual será colocado online publicamente.